terça-feira, 21 de junho de 2011

O ÚLTIMO PAR DE ASAS

"Elas estavam em uma vitrine. Brancas, leves e cintilantes. Remexiam com os pensamentos até do Homem mais frio do mundo. Todos as desejavam, também pudera, tão perfeitas... inatingíveis e a um preço altíssimo, que ninguém poderia alcançar. Já tinham virado rotina os rostos colados no vidro fosco, lágrimas entre cobiças e pecados, tudo unido e acumulado, quase se igualando ao poder nelas contido. A pequena vila estava mudada, desde o tempo em que aquele anjo abdicou nada mais é o que parece por aqui. A igrejinha mesma, antes babando fiéis, perderia seu lugar para uma vitrine de um açougue. Sim, logo um açougue. Conta a história que, anos e anos atrás, um anjo desceu à Terra com um propósito e em uma única chance deveria cumpri-lo ou render-se. Pois foi logo nesta velha vila que ele apareceu. Como em um arco o céu se abriu e dele um raio ofuscante baixou sobre um balde jogado entre os buracos do calçamento trincado da casa 26. O mais belo dos belos anjos ergueu-se e , avistando os simples olhares que o fitavam, procurou cumprir seu objetivo enfim, mas como pobre anjo que não conhece o abismo, deparou-se com a verdadeira face da casa 26, um matadouro das puras almas, impiedoso e silencioso como uma flauta sem notas. Ali, desfez-se o anjo em lágrimas iluminadas, prostrado frente ao sangue esculpido nas peças presas aos ganchos, chorou enquanto ele próprio arrancava suas asas, procurando palavras em resposta para tal selvageria na qual seus belos olhos não queriam acreditar. Esse foi o recado que o anjo abdicado levou consigo para o nada, a crua face da transformação ocorrida na alma humana, tão diferente da que seu Pai presenteou os Homo Sapiens. Então o tempo parou. Ao ver as asas tão lúcidas e ainda batendo, a chance não foi perdida, foram colocadas á venda por um valor exacerbado, não deixando ninguém chegar próximo do tão idealizado voo para o céu. Desde então nada acontece de novo, são as mesmas caras ficando lisas de tanto rasparem no vidro daquele açougue, são as mesmas lágrimas perdidas e os mesmos sussurros vaidosos, cada qual com seu verdadeiro e único motivo de poder ter em mãos a chance de um sonho realizado: ir para o céu. Fácil assim, como se apenas as asas bastassem. Ao soar do sino, todo meio dia em frente ao açougue era inquietante, fiéis esperando para serem escolhidos pelas asas e o açougueiro disposto a picotar fosse quem fosse , caso chegasse perto do tesouro branco. Todos queriam para si as tais asas, menos o açougueiro, que iria presentear a sua primeira filha como em promessa, para que ela subisse aos céus sem conhecer o pecado mundano. A filha, anos depois já nascida e com dez anjelicais anos de vida, sabendo da promessa, inocentemente abdicou as asas em troca de um leitãozinho vivo, arrancado com vida das entranhas de uma porca moribunda na mesa do açougue, como sendo seu presente de aniversário. Abismado, seu pai retrucou e, ao meio dia de um desses domingos santos, ele segurou o leitãozinho pela cabeça em frente as asas e aplicou-lhe sem dó uma só cravada de facão, transpassando-o nas costas rosadas, criando um gemido dolorido que ecoaria para sempre no coração e na memória de sua filha. Sua própria filha, que acabara por abdicar o reino dos céus em troca da compaixão por uma peça viva de carne com orelhas esvoaçantes. Sendo jogado em um canto qualquer, o pobre porco mirou seu olhar na triste menina que o pegava no colo, dando-o de beber com suas lágrimas puras, para que o porco não passasse sede até a hora de sua morte. Abraçou-o e embalou-o como se fosse uma boneca de porcelana cara, cantou sua canção preferida para ele enquanto procurava ao redor algo menos assombroso de se olhar. As asas! ... Fixou-se nas asas da vitrine e seu choro cessou enfim, com a calmaria que aquela nova ideia trouxe ao seu coração. E ao meio dia de um santo domingo, um leitão transpassou como uma bala o vidro da casa 26 e subiu ao céu com suas novas asas translúcidas, enquanto o arco de luz fechava-se e o raio que o guiava ia sumindo, deixando apenas a poeira junto ao balde jogado entre as rachaduras do calçamento velho da vila esquecida..."